Cineclube Sganzerla apresenta: Tocaias no Asfalto — Parte 1
Entre a rotina de assassinos de aluguel, missões secretas conduzidas por agentes internacionais, perseguições entre policiais e ladrões e a busca impossível por redenção, a primeira parte do ciclo Tocaias no Asfalto, apresentado pelo Cineclube Sganzerla entre os dias 14 e 21 de dezembro, dedica-se ao cinema de ação como gesto, mise-en-scène e pulsação contemporânea. Os encontros virtuais serão realizados via Google Meet, nos domingos 14 e 21 de dezembro, a partir das 16h. Clique aqui e inscreva-se para participar.
Em comemoração aos dois anos de atividade do cineclube, esta seleção reúne quatro filmes que atravessam diferentes geografias do gênero — da frieza calculada de Berlim ao glamour tautológico do 007, da elegância barroca japonesa à moral trágica de Hong Kong. Assinado coletivamente pela curadoria do Cineclube Sganzerla, o programa traz obras de Thomas Arslan, Martin Campbell, Kinji Fukasaku e John Woo.
A seguir, a folha de apresentação, com textos dedicados individualmente a cada filme.
Im Schatten (Thomas Arslan, 2010) — por Ezequiel Silva.
Em um programa de filmes chamado Tocaias no Asfalto, espera-se ver, justamente, tocaias no asfalto. Pois bem, o que não falta em Im Schatten são elas: as tocaias no asfalto. O longa-metragem acompanha a rotina de trabalho do criminoso profissional Trojan, cujo cuidado e meticulosidade na preparação para o que pode ser o último grande roubo da carreira o colocam em constante movimento pelas ruas de Berlim. Quando não está entocado nas sombras que dão título àquela que, para muitos, é a obra-prima do cineasta alemão Thomas Arslan, Trojan dirige de um lado para outro da cidade, trocando de veículos, descartando-os em estacionamentos, abrigando-se em hotéis baratos. Os asfaltos que sucedem as tocaias geralmente o conduzem a estradas de chão batido em lugarejos distantes dos grandes centros urbanos ou ruas sem saídas onde cadáveres e armas de fogo são desovados sem muita cerimônia.
Com os ombros contraídos e as mãos sempre dentro dos bolsos da jaqueta de couro um tanto quanto curta, a composição do personagem de Mišel Matičević lembra os modelos bressonianos de L’Argent, ainda que à revelia do charme latente que Trojan emana em certos momentos do filme de Arslan. Por falar no diretor e roteirista de Im Schatten: a produtora de seus primeiros longas-metragens chama-se, curiosamente, Pickpocket Filmproduktion. Uma informação digna de rodapé, sim, não fosse o fato de o cineasta seguir de perto alguns dos silenciosos pressupostos do manifesto de Robert Bresson, Notas sobre o Cinematógrafo. Basta lembrar, por exemplo, daquele aforismo em que Bresson prega “que nada seja mudado e que tudo seja diferente”. O que funciona, no fim das contas, como uma síntese do que o gênio de Arslan enquanto encenador é capaz de fazer com o cinema de ação em 2010.
Casino Royale (Martin Campbell, 2006)— por André Ramos.
Dentre as retomadas do noir e de suas estruturas, o filme de 2006 de Martin Campbell, que reinicia a franquia 007 conscientemente pela primeira vez, se utiliza de algumas delas. Principalmente do duo homem-femme fatale. Depois de 21 filmes o nome de James Bond carrega tanta mística, que só resta aos produtores Barbara Broccoli e Michael G. Wilson a desmistificação (uma desmistificação que ainda mitifica e que reforça as estruturas do mito anteriormente concebido, claro). Os demais Bond eram silhuetas, homens mascarados e que, mesmo que sejam às vezes levados por suas emoções, são apenas máquinas. O Bond de Daniel Craig é um personagem à moda dos novos tempos, um camaleão, adaptado às novas relações descartáveis. Ele se passa muito bem por manobrista e por apostador. Altamente adaptado à uma época de vigilância, onde as dinâmicas geopolíticas estão intimamente ligadas às imagens, às aparências. Em outras palavras, as imagens adquirem seu valor na proporção direta do que elas ilustram ou parecem ilustrar. Falando em aparências e imagens, prestemos atenção aos olhos dos personagens, sejam os olhares que se atentem aos tiques dos personagens quando blefam no jogo de Texas Hold’em valendo uma fatia do mundo, sejam os olhares trocados entre os mesmos personagens na tentativa de sempre estar um passo à frente. Observar os olhos de Vesper Lynd sempre chamando atenção para si, porém nunca em close, como é o caso de James e o de Le Chiffre. Os delineados e os cílios rebeldes dizem muito mais que o profundo decote.
Black Lizard (Kinji Fukasaku, 1968) — por Luiz Brasil.
Ser um assassino é um trabalho solitário, Seijun Suzuki assim o tematizou em Tóquio Violenta (1966), onde a troca de tiros adquire uma função contratual. A partir de A Marca do Assassino (1967) e na elegia Pistol Opera (2001), o combate foi perdendo o sentido: uma bala é disparada num cano de esgoto e acerta o alvo andares acima, dois assassinos duelam numa floresta mas o primeiro a acertar um espelho vence, o jogo se torna mais frutífero, e na mesma medida inútil.
Em seu palácio de cadáveres bem conservados, a temível assassina de Black Lizard (1968) devolve a tensão que faltava ao combate, ao invés dos disparos em meio à uma tocaia, prefere a devoção apaixonada ao detetive que a persegue. Dirigido por Kinji Fukasaku (mais conhecido por Battle Royale de 2000) e baseado numa peça teatral de Yukio Mishima, o filme poderia muito bem se anexar ao universo de James Bond: uma ladra de jóias preciosas, utilizando da hipnose e dos mais diversos disfarces, sequestra a filha de um poderoso magnata, cabendo ao nosso agente secreto superar o seu alvo no jogo de truques.
Se os filmes de ação constantemente privilegiaram a perseguição mortal entre personagens masculinos, no duelo com uma vaidosa assassina, amante das artes, das roupas de luxo e dos homens solitários que bebem em seu bar, as regras do jogo são subvertidas, o crime se assemelha a um truque de mágicas, vencendo não o mais habilidoso no gatilho, mas o oponente que for mais passional.
The Killer (John Woo, 1989) — por Misael Santos.
Entre a devoção e a bala, poucos diretores deram ao gesto violento uma dimensão tão religiosa quanto John Woo. The Killer (1989) talvez seja o momento em que esse impulso atinge sua forma mais cristalina: um filme de ação que, ao mesmo tempo, parece suspenso num espaço de tragédia moral, quase um melodrama ético disfarçado de tiroteio
coreografado. Não à toa, o assassino Ah Jong (Chow Yun-fat), ao tentar reparar o dano que causou — a cegueira acidental da cantora Jennie —, passa a habitar um regime de culpa que se confunde com missão, como se cada novo disparo fosse também uma tentativa de restituir algo do mundo que ele desafinou.
Woo filma essa jornada não como simples perseguição, mas como ritual. Os espaços, sempre prestes a explodir em chamas e estilhaços, comportam uma estranha delicadeza: óculos escuros retirados com cuidado, um pano branco que enxuga o sangue, uma arma que se oferece como extensão sensível das mãos. É por isso que The Killer é um filme de dualidades — violência e ternura, dever e compaixão, amigo e inimigo. O policial Li Ying (Danny Lee), que deveria perseguir Ah Jong até o fim da cidade, acaba reconhecendo no assassino algo como um reflexo: o último profissional íntegro em um mundo que transforma justiça em transação.
Se Arslan trabalha o silêncio e a preparação, se Campbell lapida o mito até revelar o homem por trás da máscara, e se Fukasaku subverte o jogo ao entregá-lo a uma assassina movida pela paixão, Woo amplia a ação ao campo do sagrado. Seus “tiroteios-baletes” não são estilização vazia, mas a visualidade de um cinema que acredita que o choque entre os corpos pode gerar esclarecimento moral — mesmo que tardio, mesmo que impossível de concluir. Nas tocaias desta Hong Kong hiperestilizada, o asfalto não é apenas terreno para a perseguição, mas o palco de uma epifania trágica: a constatação de que o mundo está perdido, mas seus personagens tentam, ainda assim, salvar um último fragmento de beleza.
Em The Killer, cada troca de tiros é também um pedido de perdão, e Woo filma esse pedido com a convicção de que o cinema pode ser, simultaneamente, fogo cruzado e súplica. Afinal, como diria Bresson — tão presente em Arslan e curiosamente ecoado aqui —, “que nada seja mudado e que tudo seja diferente”. Woo não muda a ação, apenas a torna outra coisa: um gesto de amor lançado no meio da catástrofe.
Programação:
14/12/2025 | 16h – Conversa sobre Im Schatten (dir. Thomas Arslan, 2010) e Casino Royale (dir. Martin Campbell, 2006).
21/12/2025 | 16h – Conversa sobre Black Lizard (Kuro tokage, dir. Kinji Fukasaku, 1968) e The Killer (喋血雙雄, dir. John Woo, 1989).

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