Cineclube Sganzerla apresenta: Quem te fala é uma morta
Leia abaixo o texto de apresentação da curadoria:
Quem te fala é uma morta
Por Luiz Brasil.
“Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei”, assim se apresenta Geni ao seu esposo e aos espectadores, através de uma gravação de voz. A partir desta voz fantasmagórica seremos apresentados a trama de Toda Nudez Será Castigada (1965) de Nelson Rodrigues, que nos revelará o motivo de seu suicídio. Para o dramaturgo carioca o tema não lhe será novo, já na sua peça de estreia, Vestido de Noiva (1943), encontramos outro espírito errante em cena: a noiva Alaíde, que após um acidente automobilístico tenta rememorar o passado nos seus últimos minutos de consciência.
Ao contrário do que fez Nelson Rodrigues no teatro, onde seguimos um corpo ou voz fantasmagórica para o desenrolar da narrativa, no filme O Vampiro (Dreyer, 1932) o estudante de ocultismo Allan Grey é que procura os espíritos, havendo na obra uma nítida distinção entre alma e corpo: em determinado momento do filme, Allan delira que seu espírito escapa de seu corpo, adentra num cômodo escuro e acaba vendo a si mesmo estendido em um caixão - que será conduzido por fantasmas e vampiros ao cemitério.
A cena ilustra como o cinema foi além na arte de representar fantasmas, preservando-os num estado asfixiante de imobilidade/impotência: um espírito está preso à imagem de seu próprio cadáver, condenado, se conforma a seguir com o ritual fúnebre, restando-lhe a eternidade para assombrar os viventes. A cada década, os fantasmas no cinema saíram dos pesadelos de um jovem ocultista e das sombrias carruagens fantasmas (como no filme mudo de Victor Sjöström) para adentrar na plena luz do dia, adquirindo cada vez mais fisicalidade, se tornaram de carne e osso.
Assim será o espírito do Capitão Gregg em O Fantasma Apaixonado (Mankiewicz, 1947) que corteja, zomba, ama e sofre por Lucy Muir, a única que consegue vê-lo. Ela vem morar em seu casarão na beira mar, assombrado pela memória de suas glórias como capitão marítimo e da vergonha de seu suicídio, um crime que o aprisionou na instância desencarnada. Lucy não sente medo de Gregg (um espectro distante do signo de “mau agouro”), juntos descobrirão a ternura e o horror de viver um amor insuperável, separados pela vida e a morte - encontrando somente nesta o reencontro.
Será neste registro melodramático de amores insuperáveis e crimes irresolutos que residem os fantasmas aqui escolhidos, presos em castelos, ilhas marítimas ou em quartos de hoteis. Não nos atemos ao relato fantasmagórico, nem ao encontro dos mortais com figuras mal assombradas, os cineastas contemplados deste ciclo (Kenji Mizoguchi, Raúl Ruiz e Jacques Rivette) diluem as barreiras entre a fantasia e a realidade, o mundo terreno e o espiritual. Cada um à sua maneira conserva e desdobra características melodramáticas em seus contos fantasmagóricos, fechando assim uma tríade de sofrimentos amorosos que persistem em vida através dos tempos.
A programação inicia com Contos da Lua Vaga (Mizoguchi, 1953), em meio a uma guerra civil no Japão feudal, onde espíritos de jovens mulheres são subjugados a violência patriarcal que lhes roubou seus sonhos e esperanças. Se no cinema de Mizoguchi a realidade se confunde como um sonho e vice-versa, é porque dois mundos se conflitam: o mundo objetivo e o subjetivo (como nos conta Jean Douchet¹), se o primeiro tenta impor sua lei rígida para destruir toda vida afetiva, será no segundo que seus fantasmas tentarão preservar a qualidade interna da vida interior e espiritual - mesmo que isso custe um preço.
Na ilha de A Cidade dos Piratas (Ruiz, 1983), Isidore vive a experiência do exílio, na companhia de seus pais e dos inúmeros espíritos que por ali habitam, presentes em objetos, sombras ou nas profundezas do mar. São fantasmas anônimos, sem paradeiro e sem história, exceto por um: o de uma criança que matou sua própria família, que instruirá Isidore ao assassinato. Ela, assombrada pela memória de um amor que não consegue esquecer (e, ao longo do filme, nem substituir), consegue dar vazão a sua angústia matando seus possíveis pretendentes.
Em História de Marie e Julien (Rivette, 2003), o último filme selecionado, os espíritos possuem solidez, mas ainda faltam-lhes materialidade: sangue algum corre em suas veias. Passeiam nas calçadas e se misturam à multidão parisiense, encontram amores antigos por um acaso, os convidam para jantar, flertam, transam, gozam e ardem de ciúmes, desejam viver; procuram se reconciliar com o passado que os condenou através do amor. Evoca-se, assim, as palavras da princesa Salomé na peça homônima de Oscar Wilde: “O mistério do amor é muito maior que a própria morte”.
A cada sessão, revisitaremos imaginários cinematográficos distintos sobre estes eternos condenados que, assombrados pelo seu passado, borram as fronteiras do mundo terreno para cumprir seus anseios, revisitando perpetuamente a mesma instância da dor que os definhou. Enquanto alguns matam para levar mais almas errantes ao mundo, outros espíritos encontram no calor dos corpos mundanos a fonte de seu alento e sobrevivência, como se lhes dissessem: “sou já uma morta, não existo, mas agora que te vejo pareço viver nos teus olhos”. Vivos em nossos olhos, estendem a nós, espectadores, o convite para o encontro fantasmagórico: venha, doce morte!
Programação:
20/04/2025 | 16h – Conversa sobre Contos da Lua Vaga (Kenji Mizoguchi, 1953) e A Cidade dos Piratas (Raúl Ruiz, 1983).
27/04/2025 | 16h – Conversa sobre História de Marie e Julien (Jacques Rivette, 2003).
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