Cineasta interpretado

 Por Rogério Sganzerla.

Alguns anos depois de sua morte, o diretor Kenji Mizoguchi tornou-se na Europa um fenômeno tão discutido como Bergman ou Antonioni. Entusiasmou especialmente os críticos franceses: por seu estilo poético e realista, que lembra o impressionismo de um Renoir ou Bresson; por seu amor por Maupassant e Balzac (“qui ont volu mettre au couer de leur ouvre l’homme réel tout entier”); pela técnica moderna de cenas longas; por uma limpidez que lembra Murnau e Von Stroheim. E sobretudo por adotar um recuo diante da realidade, por “uma certa distância da câmera…” (segundo M. Mesnil o cineasta substitui uma câmera-testemunho por uma câmera engajada com a intriga, quase inquisitorial).

Define-se Mizoguchi como “um observador do mundo físico e humano” – de olho natural e distante do mundo; e este seria o segredo de sua força crítica. Não há, em seus filmes, enquadramentos insólitos que chamassem a atenção, que violentam a realidade. Ele não tentou “tricher avec la reality” e mostrava as coisas como ele via – como elas existiam – sem amplificações ou desvalorização. É dessa limpidez do olhar que nasce uma filosofia; e eu ajunto que para ser cineasta – como para ser filósofo – é preciso, segundo Stendhal, “ser claro, seco e sem ilusões”; um banqueiro que fez fortuna possui uma parte do caráter necessário para fazer descobertas na filosofia, portanto, para ver claro dans ce qui est. “(...) Réalité, clarté, immédiateté, en un mot: evidence”. Mizoguchi fez um cinema situado; se colocava, como o japonês, ao nível das coisas filmadas. E aqui seria preciso falar em Ozu, que provavelmente o autor francês desconhece.

KenjiMizoguchi: “na verdade, fui estimulado pelos quadros que Picasso pintou antes do fim da guerra. Quis apreender os objetos num constante corpo-a-corpo (...) Não se deve filmar uma história com paixão. É preciso guardar sangue frio o suficiente para fazer decifrações evocativas, mas objetivas (...) O cineasta deve dar atenção à banalidade. Repito que o sentimento dramático deve existir em três dimensões (...) Possuo um gosto particular pelos desenhos no estilo da escola chinesa. Há neles a profundidade de campo. Gostaria de incorporar aos meus filmes esta profundidade dos desenhos chineses. Traduzir suas ‘nuances’ – tudo em traços finos (...) O mais importante é evidentemente o roteiro (...) Uma mentira é uma mentira. É preciso verificar tudo, senão o filme vira uma mentira. Mesmo o criador de histórias em quadrinhos deve verificar tudo”. Perguntaram-lhe “o que é a mise-en-scène” e ele deu uma resposta digna de Rossellini: “é o homem!! Exprimir o homem!”.

Michel Mesnil descobre a violência como chave do universo mizoguchiano. “Ele cria um universo da recusa e da cisão, dos homens desonrados – um mundo desfigurado”. Numa sociedade destruidora, o olho do cineasta volta-se com simpatia às vítimas indefesas, ao pobre, ao homem pequeno, à mulher. Especialmente ela – a mulher sofredora, evidentemente. Sofredora no amor – seu tema número um; em torno do qual giram o passado e o presente, a potência e a pureza, a guerra, a sociedade, o amor… Sua obra realiza toda uma concepção humanista do amor; a exaltação do casal contra a sociedade, contra toda força separadora. “O amor e sua passagem sensível: a poesia: é de sua expressão – do corpo e da alma – no espaço/tempo que nasce o mistério. Os grandes momentos de Contos da lua vaga e Amantes crucificados são momentos misteriosos”.

Referências:

Michel Mesnil, KENJI MIZOGUCHI, Ed. Seghers, Co. Cinéma D’Aujourd’hui, n.o 31, Paris, 1965, 190 pags.

Cineasta interpretado foi originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, no dia 20 de maio de 1967.

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