Em frente, à vastidão

Por Patrick Holzapfel.

It’s just a place. A place can be crossed.
(Gregory Peck como “Stretch” Dawson em Yellow Sky de William A. Wellman)

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Aqueles que tendem a se perder na floresta são frequentemente aconselhados a seguir em frente em uma única direção. Em algum momento, a floresta tem que acabar. Isso pode ser verdade. Mas também é fato que: se você continuar adiante, em algum momento terá andado em círculos e acabará voltando para a floresta. Isso sem falar em tudo o que precisa ser removido do caminho (batido, chutado, arrancado) para que seja possível avançar (dirigir, voar) em linha reta. Ninguém deveria dizer que as linhas mais retas possíveis entre dois pontos são apenas uma construção mental. Nós a encontramos em todos os lugares, ela está sujeita aos princípios de simplificação, conveniência e aceleração.

O cinema, como o conhecemos, é uma arte que vai em frente. Isso significa: olhamos para a frente, um filme passa em linha reta (avançando ou raramente recuando, mas nunca curvando-se ou inclinando-se), a luz não incide na tela em curvas e, se isso acontecer, é extremamente desagradável. Todo o dispositivo se baseia em uma visão direta, o mais simples e eficaz possível. Isso também se aplica à câmera e sua relação com a realidade, embora aqueles que a utilizam tenham desenvolvido várias estratégias para escapar dos ditames dessa linearidade: reflexos, obstáculos que bloqueiam a visão, movimentos de câmera, rotações, fragmentos de imagens, ausência de imagens, Dolby Surround, todos os tipos de tamanhos. Mas, no fim, a maioria deles volta à retidão, vamos chamá-la de firmeza, realismo, honestidade ou requerida clareza. Para reconhecer algo, para permitir que seja reconhecido, essa direção é uma boa escolha. Trata-se de uma forma inequívoca de comunicação.

Então, isso significa que o cinema é um meio de simplificação, conveniência e aceleração? Não é bem assim, caso contrário, essa forma de arte não teria sido empurrada para as margens da percepção social. Em vez disso, pode-se dizer que, embora o cinema se baseie nesses princípios, ele já não consegue traçar as linhas mais retas. Ele é lento demais, incômodo demais e complexo demais. Lamentavelmente, em muitos lugares ele ainda se esforça em negar sua própria tortuosidade. A cultura cinematográfica atual se alienou em grande parte de seu objeto de estudo. Os filmes são entregues nas casas das pessoas (negação), os enredos são reduzidos a mensagens claras (negação), as pessoas se concentram nos enredos (negação), avaliam-se em relação à mídia social (negação) e reivindicam uma atualidade constantemente atualizada (negação). Não deveríamos, na verdade, pleitear um cinema torto e cheio de curvas que não segue mais nenhuma direção?

Dirigir sempre em frente é cansativo. Qualquer pessoa que corre ou anda de bicicleta, ou até mesmo que passa horas na Autobahn, sabe que seguir em frente pode esmagá-lo e quebrá-lo psicologicamente. Os únicos que realmente amam as linhas retas: calor escaldante, ventos gelados, infames planejadores de estradas, Huskies, profissionais da NASCAR salvos das constantes corridas em círculos. A reta é previsível, controlável. É um meio sem frescuras. Ela é exigida por aqueles que dão o dinheiro. De A a B, são tantos metros de filme. Cálculos! Os planos são elaborados e a linha é dividida em segmentos. A linearidade já é sua própria abstração. Orientação que pode ser perfeitamente traduzida em números. Ou ela não termina. Então, como W. G. Sebald certa vez escreveu, vamos em frente sem um destino. Nos perdemos em uma linha reta.

Sabemos disso pelas figuras errantes do cinema. Os road movies, vamos chamar uns deles de filmes que vão em frente, combinam a linearidade com a deriva. Neles, o horizonte e a vastidão se confundem, e o suposto destino lentamente se desvanece no vazio. Na literatura, é diferente. O movimento de Odisseu, o ancestral dos andarilhos, é o zigue-zague. Talvez seja por isso que até hoje não exista um bom filme sobre suas andanças. Há duas formas de ir adiante em linha reta. Uma conduz a algo, reconhece dois pontos que estão conectados. A outra leva a lugar nenhum. A última é a verdadeira e maravilhosa forma de cinema em movimento. Essa direção libera o cinema da linearidade. Essa linha reta é comparável às curvas.

Em La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon, de Louis Lumière, todos os operários não andam em curvas ou em sentido transversal? Eles caminham assim para escapar do olhar mecânico de seu empregador. Certamente não são autodeterminados, mas no mínimo são brevemente livres, livres durante a filmagem. Eles devem aparecer e novamente desaparecer. Seria demais e simplesmente uma mentira falar aqui de uma rebelião contra a retidão; pelo contrário, esses primeiros filmes já são empreendimentos comerciais, entretanto Lumière entendia mais sobre o funcionamento do cinema do que os fetichistas da linearidade de hoje. Ele sabia que as curvas, as freadas e as interrupções correspondem ao meio. Basta olhar para seus filmes. Os trabalhadores saem da fábrica e não entram nela. Eles saem da imagem depois de entrarem nela. Livres são aqueles que contornam as curvas em uma linha reta. Isso poderia ser o cinema.

As crianças são ensinadas a andar em linha reta. Elas não têm vergonha de fazer curvas. Temos de nos comprometer com a moderação e a determinação. Jacques Tati, que pesquisou a direção do movimento humano mais do que quase qualquer outra pessoa, disse certa vez: "Quando as pessoas não se conhecem, elas seguem ângulos retos. Quando estão próximas, elas seguem curvas". Um cinema que deseja estar próximo das pessoas também não pode seguir ângulos retos.

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O maior gênero de filmes que vão em frente é o mais americano, o Western. Só existem movimentos diretos ou orientados em linha reta no Faroeste:

  • o tiro da pistola sempre acerta onde o cano está apontado. A é o cano e B é o alvo, e A e B se conectam em uma linha reta. Assim que for possível atirar em cantos (ficção científica) ou quando houver tiros que ricocheteiam em objetos e voam pelo ar (comédia), saímos do gênero. O princípio do disparo corresponde ao da câmera. Quando pensamos no filme de Peter Tscherkassky, Shot / Countershot, sabemos que os tiros só podem ser disparados em duas direções. Em outra pessoa ou em seu próprio coração.

  • as estradas que atravessam os cenários dos westerns são sempre retas. Elas levam do começo ao fim da cidade ou do fim ao começo. Há esquinas, mas não há curvas. É impossível se perder em uma cidade do Velho Oeste. Se tudo for reto, resta apenas: caminhar, cavalgar, correr, esperar, olhar, rastejar, pular. Só é possível se perder no deserto porque a linearidade perde a direção lá, uma vez que ela vai tão longe à frente que pensamos estar andando em círculos.

  • o horizonte, a vastidão, a distância, todo o Velho Oeste encontra-se sempre na frente ou atrás das figuras. Não pode existir ao lado ou afastado delas, caso contrário, as personagens e todo o seu significado se perderiam. Não haveria comoção alguma se John Wayne virasse no final de The Searchers, de John Ford. Até mesmo uma miragem surge do horror de seguir adiante. Uma curva traria realmente esperança, uma linha reta só poderia ilusoriamente criá-la. É a distância que acende o anseio do Western. Tal distância só pode ser vislumbrada em uma linha reta.

  • cavalos são melhor filmados quando estão cavalgando em frente. O mesmo se aplica a areia soprada ou arbustos arrancados do chão. Sempre que alguém cavalga em curvas em um Faroeste, essa pessoa está se aproximando da morte. Uma panorâmica rouba a vastidão de sua infinidade.

  • levar o gado de A para B, como pode ser visto por exemplo em Red River, de Howard Hawks, também é na melhor das hipóteses uma questão de ir adiante. Quanto mais obstáculos e curvas surgirem no caminho, menos lucrativo será o empreendimento (perdas, doenças, tempo, tudo custa dinheiro). Não é surpresa que uma das principais avenidas dos Estados Unidos, a U.S. Route 81, atravesse a Chisholm Trail registrada em Red River, nem que essa rota siga praticamente em linha reta ao longo do sexto meridiano de Dakota do Norte até o Texas.

  • o único meio de transporte ainda não mencionado no Western é o trem. Ao construir trilhos, as curvas geralmente são limitadas. O trem viaja melhor em linha reta. Essa máquina retilínea desloca o cowboy. O Faroeste, como tudo no cinema americano, conta o mesmo mito. Ele trata da devoção absoluta a uma ideia que leva ao abismo. Aqui está um princípio, no qual tudo o que é subordinado à ir em frente, encontra na retidão o seu fim. Quem segue sempre adiante também cairá em todos os buracos que se abrirem ao longo do caminho.

É que, e certamente não se trata de uma constatação incomum, a linearidade pode ser equiparada com atitudes políticas, sistemas cínicos e outros fenômenos sociais. Isso se aplica tanto aos Estados Unidos quanto a outros países. Retidão aqui também significa ignorância, domínio, egocentrismo, desrespeito, orientação para o lucro, destruição. Seguir sempre em frente significa achatar tudo o que estiver no caminho e chamar isso de conquista ou até mesmo de sonho.

É difícil não reconhecer os fascistas ou ao menos os reacionários de hoje nos heróis do cinema de ontem. Esses colonos brancos que reivindicam terras que não lhes pertencem. Homens que são fanáticos por justiça e trancam suas mulheres amadas (ou mulheres a serem amadas) na cozinha enquanto atiram naqueles que vieram antes deles. Pedantes cuja ética não vai muito além da lei do mais forte. Mas será que isso é tão fácil assim? Alexandre Astruc colocou essa contradição em palavras de forma magistral no seu texto publicado em 1970, “Le Shérif”: Alexandre Astrucit fait rendre justice à Howard Hawks. Rio Bravo seria a resposta reacionária e quase fascista a High Noon sem deixar de ser o melhor filme. John Wayne é o homem que vai adiante e Gary Cooper mal consegue seguir em frente. Dean Martin, que não pode andar direito em Rio Bravo, é protegido por Wayne. É de fato muito simples. A grandeza desse cinema é definida, não apenas de acordo com Astruc, por sua capacidade de manter as coisas alinhadas, de as reconduzir à retidão. O que Rio Bravo é capaz de fazer, segundo Astruc, é acionar um sentimento que mais se aproxima do orgulho de ser homem. Não é de graça que as pessoas falam de homens heterossexuais. A franqueza da retidão se tornou um caráter. Não vamos esquecer que o pênis ereto reto está. Pelo menos em teoria. High Noon só consegue acenar para isso.

Este amor por Howard Hawks, John Ford e cineastas semelhantes é popular entre aqueles que foram iniciados no cinema nas décadas de 1960 e 70. Eles são até hoje o santo pilar de todos aqueles que afirmam que o cinema não é mais cinema. É verdade que de vez em quando aparece alguém condenando todos esses cineastas e suas visões de mundo, mas aí lemos três linhas e sabemos que essa condenação não se baseia nos filmes.

Uma linguagem inteira foi acesa nesse cinema por aqueles que escreveram o Western nos céus. A linguagem concisa, árida, objetiva. Lembramos de Hemingway e Faulkner, tenhamos ou não tenhamos, não há mais nada a dizer. É uma linguagem direta. De uma perspectiva atual, esta linguagem que pretende elevar esse cinema e seus heróis parece equivocada ou no mínimo ultrapassada. Lendo pensadores do cinema de língua alemã tais quais Hartmut Bitomsky ou Hans Hurch e como eles escrevem acerca de Ford, por exemplo, perguntamo-nos. Qual o sentido dessa postura de cowboy? Por que essa poesia desértica, essas odes a um mundo que não deve estar muito distante do idealizado por Donald Trump? Qual o motivo dessa ênfase em uma cena na qual alguém está empunhando uma Colt? A razão está nos próprios filmes e na pequena diferença entre ir em frente e seguir em frente. [1]

O que mudou não foram os filmes, mas a eventual crença nas promessas dos Estados Unidos. Especialmente na Alemanha, onde os Estados Unidos já serviram de contrapeso ao nazismo. Jazz e descontração, democracia e cinema. A pretensa liberdade, o anseio pela vastidão, o conto de fadas dos pioneiros, tudo isso não apenas se dissolveu nesse meio tempo, mas também foi inteiramente pervertido. O que ficou claro mais tarde com o cinema da Nova Hollywood, embora desde então o cinema esteja se pervertendo. E essa é a grande diferença. Quando se fala dos Estados Unidos enquanto sonho nos dias atuais, praticamente passa-se por ridículo. Quando os Estados Unidos lamentam sua liberdade de forma patriótica, sentem-se envergonhados.

O cinema direto de Ford, de Hawks e, por mim, também de Peckinpah, não apenas comentava, ilustrava e habitava um mundo, ele reivindicava um novo e melhor mundo, muito embora isso já estivesse perdido nos filmes e, sobretudo, para além deles. Em algum lugar, uma utopia ainda estava zumbindo nas telas de cinema. O cinema estava de fato lá para salvar eticamente os Estados Unidos. Mesmo que tudo fosse à ruína, ainda haveria um filme capaz de mostrar o desmoronamento. Um filme capaz de admitir as contradições. Um filme que não foi construído para encobrir, mas para mostrar. Em The Man Who Shot Liberty Valance, por exemplo, Ford olha por trás das mentiras do Faroeste, ele as expõe e, precisamente por fazer isso, preserva a si mesmo e a suas personagens uma centelha de dignidade. Uma vez que o cinema ainda significava algo, muitas pessoas equiparavam os filmes que viam aos estados. E foi aí que mais tarde se abriram os abismos, porque tudo era tão branco e violentamente apaixonado pela justiça. Pode-se ver e sentir o abismo no cinema (em Boetticher, Ford ou Wise), mas assim que não se vê mais os filmes ou o mundo (e é aí que os ditames da linearidade levam), torna-se problemático.

Atualmente a maioria das produções estadunidenses, vamos chamá-las de filmes que seguem em frente, é composta pelos princípios que destruíram o país. São produtos orientados para o mercado, paralisantes, adoçados e negacionistas que acreditam serem capazes de tornar o mundo um lugar melhor. Os quais constroem o caminho mais estreito possível entre o filme e o discurso. Nada cresce entre eles.

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O que está por trás dessa guinada com relação à sensibilidade estadunidense? Mesmo que Hollywood esteja em crise há quase duas décadas, as pessoas neste país ainda se orientam pelas exportações culturais dos Estados Unidos que inundam o mercado. Desprezamos tal domínio, mas nos entregamos a ele. Estaremos simplesmente seguindo a oferta mais barulhenta e sem sentido? Ou ainda há uma compreensão maior dos movimentos universais, do ir em frente como um eterno Zeitgeist, como um marcador do agora e do futuro?

Seriam as exportações dos Estados Unidos ainda uma questão para nós? Ou será que esses produtos entenderam melhor quais são os três princípios dessa direção? Conveniência, simplicidade, aceleração? Ao menos eles os implementam com perfeição. Resistir é inútil. A quantidade faz a diferença. Os exegetas fordianos estão sendo substituídos por nomes como Steven Spielberg (já um nostálgico), Kanye West e Taylor Swift. Os blockbusters hollywoodianos e as séries americanas ainda dominam tudo. Eles trabalham com uma nostalgia que insiste em reafirmar as tendências lineares da vida na ficção. A recorrência e a repetição sem fim são, na verdade, movimentos circulares. O círculo é a linha reta perfeita. Não tem fim e, ainda assim, não precisa penetrar no desconhecido.

Portanto, podemos sustentar: existe um cinema que vai em frente e um cinema que segue em frente. Enquanto o primeiro adentra o desconhecido, o eterno, o perdido. Este último utiliza as causas e os sintomas do movimento linear para erguê-los em um princípio de produção.

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O que podemos fazer para sair desse ditame? Nós podemos nos recusar a ir em frente. Podemos parar e nos tornar um negacionista do cinema do tipo de Bartleby. Aí não se vê mais nada, nem mesmo bons filmes. É possível ainda se interessar pelo que se acende à esquerda e à direita do caminho. Mais cedo ou mais tarde, começaremos a fazer curvas e, por fim, perdemos completamente o rumo. Porém, deixaremos as estradas dominantes para aqueles que as conduzirão ainda mais para o abismo. Também é possível voltar atrás. Contudo, pode acontecer que a estrada à sua frente o leve tão fundo no abismo que toda a sua história desmorone atrás dela. Certamente é impossível ir adiante. Não é possível ser rápido, confortável e simplificado ao mesmo tempo. Duas dessas características invariavelmente excluem a terceira. Uma sugestão seria avançar em todas as direções ao mesmo tempo. Invente uma nova direção. Comece onde o território ainda não está ocupado por nenhuma diretriz. Como no Faroeste. Atravessamos o deserto e encontramos uma cidade.

Geradeaus in die Weite foi originalmente publicado ma primeira edição Jugend ohne Film. Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.

[1] O advérbio alemão geradeaus, que em portugês significa “em frente”, é utilizado 60 vezes no texto original. Sendo assim e tendo em vista a aplicação da palavra no sentido figurado, optou-se por transpô-la para “linearidade”, “retidão”, entre outros. No trecho em questão, Patrick Holzapfel refere-se aos filmes Geradeaus e geradeaus. Na primeira ocorrência o advérbio é escrito com a inicial maiúscula tornando-se, com isso, um substantivo. A segunda ocorrência o mantém com a inicial minúscula. Considerando a tênue distinção entre os conceitos, traduziu-se para “filmes que vão em frente” e “filmes que seguem em frente”, bem como “cinema que vai em frente” e “cinema que segue em frente”. A tradução entende que “ir” ou “vão” implica autonomia e bravura, uma tomada de ação sujeita ao risco, representando com isso a essência constatada nas obras defendidas pelo autor. De outro lado, decidiu-se por “seguem” ou “segue”, a fim de denotar as vicissitudes e o estado no qual se encontram as produções cinematográficas estadunidenses criticadas por Holzapfel.

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