No que toca I Walked With a Zombie (1943) e Tabu (1931)

A continuidade da depuração estética empreendida por Tourneur chegará ao extremo por meio das mais inexpressivas formas, mediante os mais irresolutos conflitos interiores.


Na última sessão do CineClube Sganzerla, comentamos a respeito dos aspectos formais de Tabu (1931), sobretudo do nível de expressividade e maturação o qual a linguagem do cinema de Murnau havia alcançado àquela altura do campeonato. O cineasta alemão, advindo da escola expressionista, em seu canto do cisne supera quaisquer catalogações que poderíamos arriscar acerca da sua arte para entregar a obra fatalista definitiva.

Encerrada a discussão, eu fui sorteado para escolher o filme que será debatido no próximo encontro, com uma única condição: deveria ser de horror. Não demorou muito para o título saltar à minha mente: I Walked With a Zombie (1943), de Jacques Tourneur, o qual eu ainda não havia tido a oportunidade de assistir. Para além do gênero imposto, a minha escolha se deu pelo fato de ambos os longas-metragens serem ambientados em cenários tropicais, sem contar a graça da semelhança entre as capas deles no Letterboxd.

Em um segundo momento, lembrei que as produções apresentam contextos parecidos, especificamente no que diz respeito às parcerias entre Murnau e Flaherty e Tourneur e Lewton. Não fossem os pares, os filmes não seriam o que são. Desde então, isso tomou conta da minha cabeça ao ponto de eu não conseguir parar de pensar nessas e em outras relações. Mal sabia que, nos próximos dias, estaria completamente obcecado pelo toque fantasmagórico da pessoa por trás de Cat People (1942), Out of The Past (1947) e Stars in My Crown (1940).

Ao extremo por meio das mais inexpressivas formas

[Tourneur] Parece ter herdado de Murnau, o visionário de 'Nosferatu' e 'Tabu', um sentimento trágico da vida” (Michael Henry Wilson).

Conforme havíamos comentado quando da exibição de Tabu, não havia dúvidas de que estávamos na presença do ápice da depuração formal atingida pelo progesso do trabalho artístico de Murnau, a qual infelizmente foi precocemente interrompida em um trágico acidente de carro. O que eu ainda não tinha certeza era de que a herança estética deixada pelo alemão passaria a ser continuada por um outro europeu nos Estados Unidos: Tourneur, um francês que vagava pelas ruas paralelas de Hollywood.

Antes de seguir com o meu breve comentário, gostaria de agradecer ao Bruno Andrade pela generosa conversa que tivemos recentemente no tocante aos dois cineastas e por encorajar a programação desta “sessão dupla”, digamos assim. Sem isso, eu não teria clareado as ideias e confirmado as minhas impressões iniciais. Em seu blog, é possível conferir a íntegra do texto de Wilson acima referido.

Sendo assim, a partir dessa imersão, sinto que agora consigo compreender e lidar melhor com uma das principais características dos trabalhos de Tourneur. O ritmo. Cadência essa que não nos deixa respirar, mesmo em filmes que não ultrapassam a casa dos 98 minutos. Tampouco permite às personagens, as quais persistem sempre tão livres em suas amarras, quanto presas em suas liberdades.

A montagem desempenha um papel fundamental na progressão da arte deste cineasta único, que dizem ter feito dos curtas-metragens de 10 minutos para a Metro-Goldwyn-Mayer a sua escola. Tourneur, de plano a plano, edificará a sua obra. Tratamos do inegociável comprometimento do diretor com a ação e com a cena, capaz de fazer com que parte da expressão seja apagada em proveito da criação, conforme observou Jacques Lourcelles. Logo o ponto de partida aqui equivale-se ao fim da linha de Murnau, o qual partiu do expressionismo alemão para apurar de filme a filme sua encenação rumo ao essencial.

Tamanho é o compromisso assumido aqui em I Walked With a Zombie que a própria narrativa é desvanecida. A continuidade da depuração estética empreendida por Tourneur chegará ao extremo por meio das mais inexpressivas formas, mediante os mais irresolutos conflitos interiores.

Voltamos a sequência chave na qual a enfermeira confessa estar amando o marido de sua paciente enferma. A descoberta do amor, tão bem decifrada por Sylvie Pierre, desponta como uma revelação de impacto não mais ao espectador do que à personagem. Será daí em diante que ela abrirá mão do papel de narradora para se dissolver em meio aos seus demais pares do enredo, tornando-se, para não falarmos em protagonista, uma agente da ação.

É importante salientar que o movimento feito pelo filme de reivindicar o controle da narrativa se dá, única e exclusivamente, através da cena. A enfermeira vagueia à beira-mar, confronta a beleza e a desarmonia das águas e das rochas, em uma noite-americana a qual parece lançar um encanto por cima da imagem. Ela não aparecerá de frente e nem de costas, mas sim de lado, como se estivesse sendo interrompida pelo plongée da câmera que a observa. O corpo hesita face à falésia.

Após ouvirmos a narração sussurrada da enfermeira, uma confissão internalizada e por isso tão incisiva, uma das elipses mais implacáveis desta lacônica cinematografia irrompe das bordas do quadro para absorver tudo na mais densa penumbra do fade out. O instante em que I Walked With a Zombie reclama da narradora o controle da história, as rédeas do cavalo arredio ou a linha que puxa a boneca voodoo, é justamente quando da “beleza da ação no momento em que se realiza” (Lourcelles).

Estaremos livres, dentro dos limites possíveis outorgados às personagens, para progredirmos de cena a cena e de plano a plano pelos mistérios escondidos na escuridão da casa grande e do canavial. É chegada a hora de questionarmos, pois os filmes de Tourneur são feitos mais de perguntas do que de respostas, os segredos ocultos no quadrilátero romântico; na tensão entre colonizados e colonizadores; no senso de comunidade ou de não pertencimento; na ambiguidade da crença e do ceticismo; no contato com o estrangeiro; em suma, na luz e nas sombras.


Antirracista

Se me permitem uma última observação, a qual acaba por também repercutir a ligação de I Walked With a Zombie e Tabu, não posso deixar de mencionar a introjeção ou o surgimento do mal no paraíso que explorado em ambos os títulos. É imprescindível tocar nesse assunto, especialmente diante das alegações de que o filme do Tourneur é racista ou preconceituoso com religiões de matriz africana. Muito embora a primeira delas não seja o meu lugar de fala, ao contrário da segunda, respeitosamente peço licença.

Lembremos, para quem não assistiu ao I Walked With a Zombie, que será o fazendeiro branco quem irá praguejar a maldição original a bordo do barco logo no início do longa-metragem. “Aqui não há beleza, apenas morte e decadência”, diz o personagem em um tom condenatório e quase que profético. Vejamos, não são os olhos de Carrefour, sequer os tambores de voodoo. Foram eles, nomeadamente os Hollands e Rands, quem trouxeram as mazelas para a ilha que passou a ser chamada pelos colonizadores de São Sebastião. 

O filme do Tourneur não ocupa-se, portanto, de sublinhar a incompreensão e o medo do colonizador perante a cultura estrangeira. Não há interesse em demonizar o misticismo ou os afro-americanos. A verdade é que I Walked With a Zombie trata de observar o colonizador acabando de vez consigo mesmo, sozinho, sem intervenções externas de terceiros. A tragédia da casa grande no desenlace da trama é premeditada e passa longe do terreiro no canavial. 

Concerne a obra o completo oposto das alegações equivocadas que lhe são direcionadas. Vale pontuar que a questão em voga no filme será retomada por Tourneur no mesmo ano em The Leopard Man (1943). Altera-se a paisagem caribenha pelo subúrbio da cidade do Novo México, mantém-se o alvo. Os assassinatos brutais não são cometidos pelo felino à solta, muito menos pelos latino-americanos. O autor novamente será o homem branco, sucessor dos conquistadores e, supostamente, civilizado.

Recorro ao Wilson uma segunda vez na esperança de relevar a opinião daqueles que ainda se confundem ao assistirem um dos mais decisivos exemplares antirracistas inseridos no seio da Hollywood clássica: 

“Nascido e falecido na França, alimentado pela cultura francesa, Tourneur fez a maior parte de sua carreira nos Estados Unidos. Mas sua obra é muito fascinada pelo desconhecido e pela ambiguidade para não transbordar as duas culturas. Ela desafia a tradição cartesiana: o real é muito complexo para ser apreendido e, mais ainda, explicado racionalmente. E ela ignora o moralismo anglo-saxão: a avaliação moral dos atos é tão aleatória que desencoraja qualquer maniqueísmo. Se há uma verdade, ela se esquiva em uma franja de meia-luz onde se desdobram todas as irradiações do prisma.” [Grifos do redator].


Cineclubismo

A minha paixão pelo cinema é resultado de uma série de fatores, no entanto, ela persiste até hoje por razões pontuais. Uma delas é o cineclubismo. Em Florianópolis, pude participar de alguns. Guardo enorme carinho e gratidão pelas mostras realizadas na sala de cinema da Fundação Cultural Badesc, em particular as Sessões Foco em Cinema. 

Estou morando na Alemanha desde março e, antes mesmo de começar a sofrer com a falta dos cineclubes, pude encontrar iniciativas virtuais que corresponderam com a expectativa da experiência acima do esperado. É graças ao cineclubismo que revelações como essa são possíveis. Sempre aprenderemos ou descobriremos algo novo.

Dito isso, o CineClube Sganzerla está aceitando novos membros. Ainda que eu não faça parte da administração, posso afirmar que eles estão sempre disponíveis para atender os interessados. Para participar, basta preencher a ficha de inscrição. Clique aqui e confira mais informações sobre o projeto.

A equipe a revista de cinema Madonna também está realizando um cineclube com encontros virtuais. Siga o perfil da publicação no Instagram e acompanhe o Vestido Sem Costura para se inscrever e participar das próximas sessões. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Em frente, à vastidão

Gritos na trilha sonora