Era uma Vez em... Hollywood (2019) – Como os filmes acontecem

O lançamento do mais novo filme de Quentin Tarantino tem provocado inquietação no público, não apenas por se tratar do nono longa-metragem escrito e dirigido pelo cineasta (que afirmou querer encerrar a carreira no décimo), mas também pela provável encenação de uma tragédia verídica. Era uma Vez em... Hollywood, o qual se encaminha para a terceira semana em cartaz nos cinemas da Grande Florianópolis, parte da premissa de abordar o sinistro assassinato de Sharon Tate – atriz estadunidense morta por uma seita em 1969, quando estava grávida de nove meses.

Muitos colegas apontaram para o admirável cuidado do diretor em revisitar esse mórbido acontecimento. Os melhores argumentos, aliás, relacionam a ternura de Tarantino com a natureza possibilitadora do dispositivo cinematográfico. O que há por trás dessas reações? Num primeiro momento, a resposta aparece na maneira como o cineasta trabalha o filme em cima da expectativa do público com relação ao iminente desfecho trágico.

Brad Pitt e Leonardo DiCaprio interpretam, respectivamente, Cliff Booth e Rick Dalton. (Imagem: Reprodução/YouTube)

Adiantamos que Sharon Tate e Roman Polanski (renomado diretor polonês que em 1969 era casado com a atriz) não são os protagonistas do nono longa de Quentin Tarantino, esses papéis são atribuídos aos personagens fictícios Rick Dalton e Cliff Booth (um ator e o dublê dele, respectivamente). Será por meio dessas figuras que o diretor visita uma Hollywood em plena transformação, marcada pelo fim do período clássico e o começo daquilo que ficou conhecido como American New Wave.

Há cerca de duas semanas, publicamos um texto sobre A Noite Americana, obra que explora os bastidores de uma produção cinematográfica. O novo trabalho de Tarantino também se enquadra neste subgênero de filmes metalinguísticos. Isso porque acompanhamos um decadente ator de televisão tentando construir uma carreira no cinema (Dalton), um dublê que faz de tudo um pouco (Booth) e uma atriz em ascensão (Sharon). Logo, na superfície dessa narrativa, observamos como os filmes acontecem. Mas, mais do que isso, sentimos diversos filmes acontecendo na medida em que adentramos na experiência de assistir Era uma Vez em... Hollywood.

Margot Robbie interpreta Sharon Tate. (Imagem: Reprodução/YouTube)

Refiro-me à primeira metade da obra, a qual apresenta uma construção de mundo despreocupada, que parece não querer chegar a lugar nenhum. Quentin Tarantino tem noção de que parte dos espectadores aguarda por um conflito que mova a trama até o iminente assassinato. Sendo assim, ele ocupa-se em acompanhar a rotina das personagens, os passeios de carros, as músicas da época e notícias veiculadas no rádio. Vale ressaltar a importância desse miolo, o qual compreende o que há de melhor no longa-metragem: uma força capaz de fazer o espectador questionar a própria expectativa, diante do surgimento destes filmes paralelos.

Assistimos Dalton lidando com problemas profissionais; Booth fazendo alguns serviços, até mesmo servindo como uma espécie de terapeuta para o amigo; e Sharon curtindo as pessoas reconhecerem trabalho dela no cinema. Esses seguimentos, os quais funcionam quase como filmes isolados uns dos outros, são muito eficientes no ponto de vista dramático. Conseguimos nos emocionar com a superação de Dalton e com a felicidade de Sharon. Além disso, num misto de suspense e excitação, somos envolvidos pelo cotidiano de Booth.

(Imagem: Reprodução/YouTube)

Existem muitas camadas na primeira parte de Era uma Vez em... Hollywood, as quais preparam o terreno para dar início a segunda metade da obra, um pedaço bem diferente do anterior no que diz respeito a condução dos acontecimentos. Se o primeiro é sossegado, este é tenso – sobretudo depois do começo frenético, repleto de intervenções como narrações em off. Tarantino consegue reunir os núcleos trabalhados até então, fazendo todas as coisas eclodirem em uma madrugada naquele nobre distrito de Los Angeles, a qual ficará marcada para sempre na vida dos personagens.

Toda essa passagem é encenada pelo diretor a partir de uma chave diferente da que vinha sendo aplicada no longa-metragem até aquele momento. Apesar disso, ela não destoa do restante da obra, até porque estamos acostumados com a liberdade do filme em transitar pelos diversos acontecimentos apresentados na primeira parte – a sequência no rancho ilustra muito bem isso tudo. Era uma Vez em... Hollywood termina despontando como um ponto de interrogação na carreira de Tarantino, pois demonstra a reinvenção de uma mise-en-scène que pode estar com os dias contados para se aposentar.

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