Violência e silêncio em Killer of Sheep (1978)
Eu vou começar este comentário pelo começo, para não correr o risco de me perder. Na primeira cena de Killer of Sheep, vê-se representada uma certa brutalidade masculina no modo como o pai coloca o filho contra a parede, intimando-o, dizendo ao garoto que ele deve resolver os problemas com agressão, ou seja, na base da força. Em seguida, tem-se uma sequência na qual crianças, até onde pude ver majoritariamente meninos, arremessam pedras uns contra os outros, esbofeteiam-se e rolam no chão como se estivessem travando uma batalha. A lógica impressa pela montagem me é bastante direta: eles, os filhos, ouviram os pais. Não se confunda, leitor: os sujeitos estão todos no masculino.
Abre-se, a partir daí, uma chave de leitura possível para o longa-metragem de Charles Burnett, cuja atenção se volta à maneira como as diferentes formas de violência, perpetradas contra o coletivo que é registrado, serão, enfim, reproduzidas. Se o comportamento das crianças é reflexo do comportamento dos pais, poder-se-ia questionar qual a origem do comportamento dos pais. A resposta, à semelhança da montagem acima descrita, me parece bastante direta: eles, os pais, de alguma maneira respondem às discriminações do sistema e ao racismo da sociedade que os cerca. A violência, portanto, é cíclica.
Ela, a violência, machuca o homem que, por sua vez, consciente ou inconscientemente, machuca os outros à sua volta. Talvez uma das manifestações mais violentas dessa condição se dê justamente na impotência — que é também sexual — e no silêncio — que é também alegórico — do protagonista Stan, o matador de ovelhas do título. Em casa, ele não ouve a esposa, mantém-se sentado na cozinha de azulejos brancos, como que anestesiado, sedado. Quando, na dança ou à mesa, é procurado pela companheira, ele se furta, recusa a aproximação.
Um dos méritos do trabalho de Burnett e do elenco, cuja naturalidade desponta como um dos trunfos da encenação, está na representação do feminino em meio à relação aqui examinada. Isso porque elas, as esposas e as filhas, surgem como sujeitas ativas que contrapõem o comportamento dos homens. Como quando, por exemplo, a esposa de Stan confronta os criminosos que batem à porta oferecendo serviço para o marido. Ou ainda quando duas garotas, depois de serem afrontadas por um rapaz de bicicleta, o colocam para correr a chutes. Os métodos podem ser tão violentos quanto os dos homens, eu concordo, mas são exercidos em outro lugar, o qual é importante notar e levar em consideração. Até porque há momentos como aquele em que os olhos de Kaycee Moore, atriz que interpreta a companheira do protagonista, brilham a ponto de justificá-los.
A mulher demanda um novo homem, ela não sugere. A mulher tampouco acha que está pedindo demais. É isso o que diz a escritora Nikki Giovanni em conversa com James Baldwin, a qual está entre as referências da folha de sala assinada pelo amigo Misael, para o ciclo A Conversa Invisível, apresentado pelo Cineclube Sganzerla neste mês de agosto. No diálogo, Nikki queixa-se justamente de como o homem tem dificuldade de externar sentimentos, de amar, por conformar-se com o fato de, em um contexto específico, ser o provedor do lar. Baldwin é quem comenta a respeito do ciclo de violência no qual o sujeito está inserido, o qual, em última instância, seria responsável por colocá-lo nesse estado anêmico que equipara-se à escravidão.
Antes que eu me perca de vez neste breve comentário, devo dizer que foi arrepiante encontrar em Killer of Sheep uma representação tão natural e, por isso mesmo, tão genial daquilo que os dois autores abordaram com todo o cuidado do mundo, lançando mão das palavras e da retórica, enquanto Burnett e, novamente, o elenco, evidenciam a questão com a desenvoltura de uma criança que está a filmar pela primeira vez.
Tendo lançado tais impressões ao ar, por fim, fica o convite para participar do próximo encontro do cineclube neste domingo, dia 24 de agosto, a partir das 16h, oportunidade em que vamos conversar sobre Shadows (John Cassavetes, 1958) e Nothing But a Man (Michael Roemer, 1964). Inscreva-se para receber os links da sala no Google Meet e dos filmes.



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