True Detective - Imagens permanentes

 


“(...) a imagem de cinema atingiu uma nova idade, caracterizada não pela demarcação de trincheiras entre os regimes de ficção e as formas de representar o mundo, e sim pela inclusão do cinema num magma onde ele negocia seu lugar em meio a todo tipo de objeto visual.”

A afirmação do Oliveira Jr. abre um precedente. Um precedente de que as fronteiras entre as imagens produzidas pelos diferentes meios visuais (filmes, séries, vídeos para internet) tenham sido permanentemente borradas. Claro que o texto do crítico foi escrito em meados de 2006 e nessa época algumas dessas barreiras ainda existiam claramente. Se formos observar uma produção televisiva de 2006 e um filme produzido e lançado na mesma época, saberíamos distinguir um do outro. Poderíamos dizer o mesmo hoje?


O trânsito entre os meios visuais hoje é bem mais opaco. Existem estrelas de Hollywood estrelando em diversas produções da televisão, e existe mais prestígio aparente em uma série da HBO do que em um filme lançado pela Netflix. Isso para dizer que esse tipo de fenômeno deixa uma marca. Marca essa que também é estética antes de lógica. A consequência disso pode ser a criação de um grande inventário de imagens. E essas imagens seguem transportando suas ideias entre os diferentes meios, indo e voltando. Planos cujas ideias e símbolos inerentes a elas perdem seu ponto de origem e se tornam uma grande sensação de dejavu. 


Talvez o gênero policial ofereça um panorama mais claro sobre o tema. Imagens e situações repetidas à exaustão, cujas origens parecem que sempre estiveram expostas dessa forma, servindo como um grande atestado para a permanência das coisas que elas indicam. A trama policial que investiga um crime e este se desdobra em uma conspiração muito maior que um simples corpo não é nada de novo. True Detective se insere aqui. 


Porém existe um interesse genuíno da produção dirigida por Cary Joji Fukunaga e escrita por Nic Pizzolatto, por essas repetições. A série parece reconhecer logo de cara esse estado que eu descrevi da continuidade, do tempo que transcorre dentro dessas situações como signos de uma sensação já vivida diversas e diversas vezes. O policial Marty Hart observando suas duas filhas dormindo suavemente sob suas camas rosas no primeiro episódio. É uma representação cuja significação carrega esse zelo pela entidade familiar, pela estabilidade, por um estado de inocência já há muito perdida. A imagem carrega uma simbologia contraditória em si mesma devido ao seu estado de reprodutibilidade.



                                                                                    




E talvez justamente por terem sido reproduzidas nessa frequência, elas se tornem uma ideia flutuando por aí. A psicoesfera que Rust reclama no primeiro episódio, é um conceito que importa em uma atmosfera de pensamentos. Onde o ar em determinadas áreas propaga uma espera de pensamentos e ideias que contaminam os habitantes daquele raio. As filhas de Hart reproduzem com suas bonecas o ritual visto em uma foto posteriormente. Uma cena que mesmo que encenada voa por aí solta, consumindo aquelas vidas mesmo que estas estejam alheias a isso.


Quando Cohle diz que “o tempo é um círculo plano”, ele comenta também sobre esse estado que a série está investigando. Se temos uma percepção do tempo que tende a separar os eventos em um linha, uma percepção em quarta dimensão iria observar essa linha como algo externo à nós. Em suma, iríamos ver o tempo pelo lado de fora, distinguindo eventos não como instantes isolados perdidos no meio da tela, porém como uma permanência. Em vez de “aquilo aconteceu” usaríamos “aquilo acontece”. Isso se presencia nesse caráter das cenas que são transportadas no decorrer da série, que por esse seu status de repetição, perderam seu conteúdo informativo e ganham apenas carga denotativa. Denotam aqueles signos repetidos. Enfatizam que aqueles gravetos deixados no bosque na cena do crime sempre estiveram ali, pendurados sob a copa das árvores, como signos de si mesmos. De sua presença. 


Pode-se perceber o quão pouco se gasta de tempo em um possível perfil psicológico do matador, em vez disso os realizadores preferem buscar o alcance, tanto no tempo quanto no espaço, dos seus feitos. Busca-se o prolongamento da significação deles em vez de uma explicação. Porque os chifres? Por que a espiral? Por que a simbologia entre o paganismo e o vodu? Perguntas que nasceram para não ter respostas. Pelo menos não respostas verbais. Se o final da primeira temporada soa como anticlímax é porque ele é natural demais para aquelas situações que sugerem um crescente. Cada vez o escopo se torna maior para no final, retornarmos a um ponto originário. A profusão de símbolos no assassinato ritualísco, a partir desse ponto de vista, parece mais uma profanação desse estado. Uma aberração que surge de um desvio dessa permanência das coisas, resultando em um evento desviante que, no entanto, reforça esse caráter imutável. Aquela mulher sempre esteve exposta daquela forma desde o início dos tempos, é um evento que não pode ser mudado e que conserva em sua própria duração essa impossibilidade. Assim como as imagens que a retrata. 


Talvez parte desse espírito frustrante deixado ao público seja um resultante do constante flerte com o sobrenatural que a série emprega. Sugerem, como a própria palavra também sugere, algo além daquilo que está sendo mostrado. Porém, o extracampo ou a carga sobrenatural das situações vem justamente de seu esgotamento representativo, de que se as imagens apenas denotam aquelas mimeses de si mesmas, algo além entra de contrabando na figura, como forma de suplementar sua significação. A entropia sendo quebrada reforça a ideia de antinaturalidade. No fim das contas, aqui em True Detective, elas são sinônimas. Uma reforça a outra.


No final vemos aqueles planos dos espaços que servem como pivôs de desenvolvimento da investigação policial. Objetos imóveis que no tempo, mas que conservam o aspecto sinistro do acontecido. Porém com o decorrer dos episódios, percebemos - e essa sequência salienta isso - não são acontecidos. São mais uma vez, permanências. 




Por André Ramos

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