The Leopard Man (1943) | O temor da escuridão

As personagens nos filmes de Tourneur, muitas vezes, são movidas por forças maiores do que elas próprias. Livres em suas amarras ou presas em suas liberdades, como distinguiu Chris Fujiwara, figuras, especialmente as femininas, persistem ao avançar das ações que não raras vezes as colocará diante de abismos ou na presença de sombras. Como aqui em The Leopard Man (1943).

Nunca antes o ritmo deste cineasta foi tão acelerado, sobretudo quando comparamos o filme com os outros dois realizados pelo diretor em parceria com o produtor Val Lewton. No desenrolar da trama de investigação criminal e mistério, com astúcia, Tourneur salta de personagem a personagem costurando o traiçoeiro vestido do universo fílmico. 

O desprendimento da narrativa com as vítimas, o qual antecipa Alfred Hitchcock em Psycho (1960), nada mais é do que a extensão do que o cineasta havia feito a partir da primeira meia-hora de I Walked With a Zombie (1943). Não concerne ao diretor o eventual e mero choque da descontinuidade das personagens, o que importa é examinar genuinamente o horror imprevisível da sugestão.

O temor da escuridão

A consciência na concepção e o comprometimento na progressão das imagens é absurda. Se Tourneur resolve mostrar primeiro o deslocamento de Clo-Clo pelas ruas do bairro após o incidente com o leopardo é porque pretende contrapor a imagem em um segundo momento.

Tomemos a sequência como exemplo, até porque ela é de encher os olhos. Enquanto a dançarina caminha pela calçada mal iluminada, diversos objetos cênicos e silhuetas de corpos são clareados a fim de surgirem como espectros que interagem com ela ao longo do trajeto. Os estímulos são muitos, o traveling beira o abstrato, mas avançamos sem medo do felino.

Não demora para pularmos ao núcleo de Teresa, a jovem será obrigada pela mãe a sair durante a noite para comprar farinha na mercearia. Eventualmente ela deverá atravessar por baixo da ponta para chegar à venda, cena essa que será cortada por uma luz na transversal destacando e dividindo a imagem em duas, acima a penumbra do túnel e abaixo a firmeza do terreno. 

O poder do cineasta de lidar com a sugestão do horror e com o horror da sugestão encontra um dos seus ápices nesta altura de The Leopard Man, se não o ápice definitivo. Tourneur alcançará tal força por meio da montagem não apenas dos planos que compõem o interior das sequências, mas mediante o próprio encadeamento das cenas.

Afinal de contas, só sentimos o temor da escuridão concreta tal qual Teresa, porque confiamos no ímpeto de Clo-Clo ao cruzá-lo em meio às abstrações.



A última moça

O Michael Henry Wilson vai dizer que não há um filme do Tourneur em que o protagonista não precise acionar o interruptor elétrico, acender uma vela, pegar uma lanterna ou uma tocha. Na filmografia do diretor, dar ou apagar a luz é um ato decisivo, uma questão de vida ou morte.

Pois bem, depois de termos saltado de personagem a personagem, uma delas vai reivindicar o papel de protagonista. Ao pedir para o suspeito dos assassinatos apagar a luz do cômodo que dividem, ainda que por um instante, Kiki assume o controle da narrativa. 

O gesto da última moça, de costas para o desconhecido, não representa mais a bravura do que a transgressividade da sexualidade feminina que é tão cara ao cinema deste cineasta.

Um olhar

A perspectiva de Tourneur em The Leopard Man parece evidenciar muito do seu caráter pessoal. Notoriamente reservado, conhecido por ter poucos amigos no lado fancy de Hollywood, encontramos em duas importantes personagens coadjuvantes algumas colocações que parecem fazer ecoar a personalidade do cineasta.

“Homens são todos bobos. Eles gostam de fazer um grande show, gritar e atirar’, declara a cartomante em uma determinada cena. “Pessoas que querem publicidade e não se importam com que riscos elas fazem os outros correrem”, pontua o policial em seguida. Estariam eles descrevendo o oposto do fantasma introspectivo que, por trás das câmeras, os rege?

Não vejo como coincidência tais sentenças terem sido expostas por representantes de lados supostamente antagônicos: brancos e latinos; ceticismo e misticismo; homem e mulher; enfim. Elas são proferidas pela ambivalência comum aos filmes de Tourneur. Portanto, me convenço a enxergar um olhar.

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