The Flame and the Arrow (1950) | A graça de Burt Lancaster, por Jacques Tourneur

Quem diria que a minha redescoberta do cinema de Jacques Tourneur passaria pelo sorriso deste Burt Lancaster num estado de graça fairbanksiano.

Eu tive de atravessar o cenário colorido, idílico e traiçoeiro de Canyon Passage (1946), ser atravessado pelas belezas e horrores da natureza humana de Cat People (1942), cruzar fronteiras com o personagem de Robert Mitchum em Out of the Past (1947) e, por fim, pôr abaixo todas as barreiras entre ciência e religião, ceticismo e crença, passado e futuro para estar presente junto ao pastor de Joel McCrea em Stars in My Crown (1950). 

Parece-me que só depois dessa jornada é que eu pude encontrar o elo ao qual todos esses filmes são ligados. Por trás da tenacidade das personagens e das persistentes configurações dos mais diversos gêneros cinematográficos, quem sabe ao seu contragosto, eu finalmente enxergo Tourneur.

Jacques Lourcelles destacou que o encanto do cinema de Tourneur, digamos assim, se dá na medida em que ele apaga por completo a sua expressão em proveito da criação. No texto, o qual tenho a impressão de ser seminal para quem quer conhecer mais a respeito do diretor, Lourcelles lista uma série de compromissos e renúncias recorrentes na filmografia do cineasta. Uma obra que, ainda de acordo com o autor, é constituída pela “beleza da ação no momento em que ela se realiza”.

“Ele [Tourneur] jamais irá, por exemplo, opor à aspereza da ação algum ideal contemplativo de que seus personagens não tem a menor necessidade, e com razão ainda maior, a nenhuma nostalgia” (Lourcelles).

Então, voltemos ao sorriso de Lancaster, intérprete do protagonista Dardo Bartoli em The Flame and the Arrow (1950). Mais do que o comprometimento com as perícias do cinema aventuresco, com os números acrobáticos, com as luzes e as sombras da arquitetura e da vegetação cenográfica, com os assaltos e combates no escuro, será na epiderme da personagem principal que Tourneur apaga-se para ocupar-se em criar este universo fantástico dos filmes de capa-espada em que eu pude redescobri-lo.

“Parece que eu não estou sozinho, quer eu queira ou não” (Dardo Bartoli em The Flame and the Arrow).

A sentença acima talvez seja a única fala expositiva do Dardo de Lancaster no longa-metragem, uma vez que a psicologização da figura é desenvolvida menos por um esforço textual do que pela “beleza do momento em que a ação se realiza”.

Uma sequência chave para compreendermos isso é quando o herói sequestra a sobrinha do Conde movido por um impulso bastante humano. Não há qualquer vestígio de cálculo ou racionalização antes disso acontecer. Ele entrará no quarto, notará a mímica de Piccolo – uma personagem que, assim como trabalho com a grua, mereciam uns parágrafos só para eles –, e somente então vai tomar a iniciativa. O movimento pode soar simples ao leitor, mas dá conta de ilustrar o que tantos falam acerca do respeito de Tourneur com a inteligência dos seus filmes e dos seus espectadores.

Ora, vejamos, aqui estamos seguindo os mesmos passos de Dardo. Chegamos juntos às mesmas conclusões no momento em que “a ação se realiza”, não mediante outras ferramentas de expressão mais claras, expositivas e fáceis de assimilarmos. Como por exemplo, diálogos funcionais entre as personagens ou tempos mortos de contemplação ao lado delas. Vamos à ação. 

O comentário está ficando extenso demais, portanto, aqui vai uma última observação antes de encerrar. 

Em um determinado momento de The Flame and the Arrow, questionam o que haveria por trás do sorriso do Dardo: seria arrogância ou espírito livre?

Eu respondo que podem ser as duas coisas. Ou nenhuma delas. No fim das contas é a graça de Burt Lancaster, “a beleza da ação no momento em que ela se realiza”, por Jacques Tourneur.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No que toca I Walked With a Zombie (1943) e Tabu (1931)

Em frente, à vastidão

Gritos na trilha sonora