Sniper Americano (2014) | Da doença de uma nação

Pode levar um tempo para compreendermos que se trata menos do destino, ou do nascimento, do que da doença de uma nação. Ao menos para o redator que aqui escreve foi necessário meditar para finalmente enxergar a meditação a respeito dos efeitos sobre os indivíduos e os coletivos atingidos direta e indiretamente por essa mazela. São eles: os soldados, as famílias, enfim, os tidos como inimigos. Estamos diante sobretudo de uma reflexão das sequelas no protagonista, este típico homem eastwoodiano, como tão bem descreveu Luiz Carlos de Oliveira Jr..

Eu tenho tentado rever alguns filmes nos últimos meses e, com certeza, a revisão de Sniper Americano (2014) foi a mais bem-vinda desde então. Há oito anos, quando o assisti pela primeira vez no início da minha cinefilia, estava com os olhos fechados para tanta coisa exceto o boneco cenográfico. Hoje, depois de revê-lo, ousaria dizer que é a mais complexa das quatro cinebiografias sobre estes (extra)ordinários heróis norte-americanos realizadas pelo Clint Eastwood entre 2014 e 2019.


No auge dos 80 anos, inserido no seio da indústria cinematográfica de Hollywood, Clint realiza uma lúcida crítica à guerra e ao estado das coisas em torno dela. Sem concessões. Um retrato tão honesto e transparente que pode facilmente confundir o espectador, como acredito ter ocorrido comigo. 


Os heróis aqui representados são aqueles que sobreviveram para contar a história – como em A Conquista da Honra, de 2007. Aleijados, traumatizados pelo terror e a violência da guerra, eles recebem tal título muitas vezes a contragosto. Um fardo difícil de carregar, o qual não raras vezes é celebrado somente pelos engomados que se alimentam das batalhas enfrentadas pelos audazes e malditos soldados.  


Em Sangue de Heróis (1948), de John Ford, observamos a cavalaria desaparecendo no horizonte até se transformar em uma única imagem: a bandeira ostentada. Aqui em Sniper Americano uma viúva recebe, em primeiro plano, a bandeira dos Estados Unidos dobrada durante o velório do marido. A mensagem ou o recado agora é direto: no tempo em que vivemos, não há mais espaço para contemporização.


O cinema de Clint mais uma vez parece ressoar ou revisar as crônicas fordianas acerca dessa nação (O Homem que Mantou o Facínora [1962]). Entretanto, tudo aqui passa pela personagem. O acesso ou o distanciamento com o mistério do filme se dá na presença – e, é preciso destacar, na imposição física e na fala – do Chris Kyle de Bradley Cooper. Um feito e tanto do intérprete, diga-se de passagem.


O herói é uma espécie de desajustado tal qual o Ethan Edwards de John Wayne em Rastros de Ódio (1956), um cowboy perdido no tempo que parece encontrar-se no combate em território inimigo e perder-se novamente quando finalmente retorna para casa. Lembremos da primeira vez em que vimos Chris adulto, sob o ponto de vista do interior daquele celeiro, uma imagem que remete ao clássico último plano da obra-prima de Ford.


A última cena de Sniper Americano, antes da inserção das imagens de arquivo, reserva o desfecho trágico aos olhos preocupados da esposa. Uma solução elegante e não menos agressiva do que encenar o assassinato do herói.




O barato de revisões como essa é que pouco me interessa os filmes. Afinal de contas, eles continuam sendo o que sempre foram e vão ser. Interessa-me mesmo contrapor o Ezequiel de 2015 com o Ezequiel de 2023. O privilégio de contemplar a metamorfose.


E, antes que eu me esqueça, faço uma última observação: simplesmente absurda a sequência em meio a tempestade de areia. Lá onde a bíblia e o rifle caem no chão, lembremos daquilo que o pai de Chris havia o advertido quando o ensinava a caçar.

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