Pelo fim do faroeste revisionista

As razões que me levaram a escrever este texto foram distintas. Do início de uma apreciação acerca do protagonista de Quando os Homens são Homens (1971) a uma crítica de Galante e Sanguinário (1957), passando por discussões com colegas acerca do western, uma questão insistia em avançar para o primeiro plano dos debates: o faroeste revisionista, termo comumente utilizado para se referir a uma safra de filmes produzidos sobretudo ao longo dos anos 1960 e 1970, os quais teriam começado a questionar as formas, os ideais e as tradições do gênero. 

Os exemplares que surgiram no decorrer dessas duas décadas naturalmente absorveram de modo inconsciente ou incorporaram de maneira consciente discussões e tensões pertinentes à época. Por mais batida que seja, aqui podem lembrar da célebre frase atribuída a Éric Rohmer: “todo filme é também um documento de sua época”. Sendo assim, em tempos de contracultura, não deveríamos ficar surpresos ao vê-la espelhada, projetada ou refletida nas telas de cinema do Velho Oeste norte-americano como ocorreu e seguirá ocorrendo com outros expedientes e períodos históricos marcantes.

Isso porque o cinema faroeste, além de essencialmente moderno, sempre foi e continuará sendo um campo aberto para a reflexão humana; uma terra “por onde passam os enigmas”, a qual foi tão bem descrita no ensaio homônimo de Bruno Andrade; um território de conflitos existenciais e políticos; um terreno com fronteiras demarcadas que são permanentemente atravessadas por aspirações individuais, como insiste em elogiar o meu colega André Ramos, mas não menos coletivas e comunitárias; enfim, o western é uma fonte tão abundante quanto a mitologia grega.

Portanto, aqui pouco me interessa analisar a validade dos títulos tidos como revisionistas a que tivemos acesso, veremos adiante o equívoco que é catalogar os faroestes de modo tão improdutivo e limitador. Interesso-me de fato pelo fim do faroeste revisionista; disponho-me a questionar a sua manutenção enquanto conceito; esforço-me para acabar com o seu uso no molde pelo qual tem sido aplicado pela crítica cinematográfica brasileira.

O emprego do termo faroeste revisionista ainda é utilizado como uma mola propulsora para validar, especialmente, os westerns mais recentes; para os vincular ao bom gosto da crítica ou às políticas em voga; em última instância, para domesticar filmes que são errantes por natureza sob a ótica de bons costumes – algo semelhante ao que fizeram com o tal do pós-horror. É um instrumento não menos perigoso do que preguiçoso que, por sorte, diz mais a respeito de quem se acomoda vendo alguma coisa em sua utilidade do que do objetivo de estudo em si – os quais serão sempre frutos desta natureza incontrolável e mitológica que está em constante expansão.

Fato é que basta um western reapresentar certa consciência ao recolocar em crise arquétipos imediatos ou heranças formais e temáticas do gênero para ser abraçado por colegas como “o mais novo e decisivo faroeste revisionista”. Não são raras as vezes em que tal euforia é sucedida pelo silêncio, como em First Cow (2020) e Ataque dos Cães (2021), os quais foram de súbito elevados ao patamar de obras-primas contemporâneas antes de caírem no ostracismo. A impressão é de que o mesmo está para acontecer com Assassinos da Lua das Flores (2023).

Poderíamos chamar de comodismo ou de medo essa falta de interesse em apreciar o western por excelência, em aceitá-lo na sua forma mais pura com todas as suas contradições, mas talvez seja apenas arrogância daqueles que assistiram a uma dúzia de exemplares do gênero e consideram-se especialistas capazes de decretar o seu fim. Sendo que o faroeste ainda caminha entre nós a procura de novos corpos, sobretudo os femininos (O Atalho, 2010), paisagens e inspirações…

A contradição do termo faroeste revisionista na crítica cinematográfica pode ser melhor observada quando colocamos em perspectiva os títulos mencionados na abertura do texto. Quando os Homens são Homens é tido por muitos um dos principais westerns revisionistas dos anos 1970, por mais que o destino do protagonista seja trágicamente clássico. O forasteiro pode não ser aquele que retorna à natureza – na chave de Paixão dos Fortes (1946) ou de Um Certo Capitão Lockhart (1955) –, mas sim um trambiqueiro que sairá de cena por não ouvir as mulheres – o mesmo erro do xerife de Gary Cooper em Matar ou Morrer (1952).

Por outro lado, Galante e Sanguinário, o qual seria um faroeste clássico e dourado por excelência, parte do limiar exaustivo da ação, de fontes esgotadas e de fronteiras desbravadas para justamente examinar as profundezas da psicologia das personagens inseridas em uma sociedade perversa que sofre para manter a ordem. Como colocado por Bruno Andrade: o que é indispensável ao western sempre esteve lá e nunca deixará de estar. O faroeste não precisa ser revolucionário há pelo menos 50 anos, se é que um dia precisou ser.

O revisionismo, conforme entendido por parte da crítica cinematográfica brasileira, já encontrava-se de corpo e alma em The Half-Breed (1916) ou nos cowboys que tomam de assalto as ruas de New York em Bucking Broadway (1917). Não vamos esquecer que estamos tratando do único gênero, de acordo com André Bazin, cujas origens se confundem com as do próprio cinema.

Certa vez o camarada Raphael Cubakowic comentou que, apesar dos filmes lançados entre os anos de 1930 e 1950 terem sido aqueles que obtiveram o maior respaldo crítico, as bases dos faroestes foram consolidadas na década de 1920. Com isso, desde então, “temos revisões sobre revisões” – sem falarmos na influência da literatura que precede isso tudo; nas aventuras estrangeiras na Alemanha, no Brasil e, acima de tudo, na Itália e nos desertos da Espanha.

Ainda no que tange o western nas primeiras décadas do cinema, vale um adendo que também funciona como uma recomendação ao leitor. A recente pesquisa da Nanna Verhoff, publicada com o título de The West in Early Cinema: After the Beginning, lança luz aos faroestes realizados entre os anos 1895 e 1915. Para além do importante resgate da produção, a autora dedica um capítulo inteiro às pioneiras do gênero nesse período silencioso que tem muito a nos contar.

Não é necessário, embora seja muito bem-vindo, inserir pioneiros como William S. Hart e Allan Dwan na dieta dos emocionados para encerrarmos de uma vez por todas com essa a conversa contraproducente e focarmos no que realmente importa. Ainda que seja importante nos aprofundarmos nas origens do western para conhecermos os pilares a fim de examinarmos as diversas transformações dos filmes de faroeste ao longo da história do cinema, não devemos ignorar o seu estado atual. É dever do cinéfilo interessado e do crítico confrontá-lo.

Isso porque em meio a incontáveis e precipitadas declarações de falência, revisões e subversões, um gênero teima em resistir na epiderme das pistoleiras de Vingança & Castigo (2021); nos últimos minutos de Retorno da Lenda (2021); na incursão, como em outrora com Douglas Sirk, de cineastas do drama e do melodrama no faroeste (Jane Campion, Pedro Almodóvar); nos seriados e nos roteiros para cinema de Taylor Sheridan; nas personagens dos melhores e piores filmes de Kelly Reichardt; e por que não nos jogos eletrônicos da franquia Red Dead Redemption e nas pinturas de Mark Maggiori? O que procuramos, desde o princípio, está posto aí. 

Pelo fim do faroeste revisionista, passamos a falar de sua resistência.

“[…] ao invés de lastimar as contaminações passageiras do western, seria melhor maravilhar-se com o fato de ele ainda resistir” (André Bazin).

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