Paixão dos Fortes (1946) | Um certo tipo de forasteiro

Dos diversos arquétipos que permeiam o cinema faroeste, talvez a figura do forasteiro seja a mais explorada. Fernando Simão Vugman vai chamá-lo de westerner, um mediador entre a natureza e a cultura; um homem que adentra no seio da comunidade para organizá-la, ainda que esteja sempre em conflito com os códigos e as regras da civilização. Um dos melhores exemplos desse tipo é o Wyatt Earp interpretado por Henry Fonda em Paixão dos Fortes (1946) – outro filme de John Ford que trago à baila neste espaço.

Quando o vemos pela primeira vez, manejando uma boiada aos pés do Monument Valley, Wyatt Earp encontra-se um tanto quanto empoeirado e com a barba por fazer. Ele troca algumas palavras com os Clantons, ação registrada por um plano levemente inclinado que enquadra o rosto do vaqueiro – o qual, descobriremos mais tarde, abandonou o posto de xerife em Dodge City para se dedicar aos negócios da família.

Ainda não sabemos tudo – nunca vamos saber tudo, aliás –, mas o importante a ser destacado é que a câmera e o corpo do intérprete tratam de sublinhar logo de início a vontade do homem em escapar o quanto antes dos problemas que se avistam.

Ironicamente, melhor dizendo, severamente o universo prega uma peça trágica quando o forasteiro decide visitar a cidade mais próxima para fazer a barba – (justshave, ele insiste. Wyatt Earp se vê obrigado a retornar para o mundo que escolheu abandonar somente para ter o direito de puxar o gatilho na sua busca por vingança, a qual se transveste de justiça a partir do momento em que ele pendura o distintivo de xerife de Tombstone no peito.

A investidura do forasteiro ao cargo, além de servir como contraponto para acentuar as características do arquétipo aqui exanimado, coloca em evidência dilemas éticos e morais do gênero cinematográfico. Sobretudo no que diz respeito ao emprego da justiça, a qual conforme observado por André Bazin, neste território arredio deve ser aplicada "por homens tão fortes e temerários quanto os criminosos".

Voltamos ao herói que, agora, com a barba feita e bem vestido, transita na sociedade. Ele aguarda paciente pela primeira oportunidade de concluir a missão que o colocou novamente em contato com códigos e regras outrora rejeitados.



Nesse meio tempo, entretanto, Wyatt Earp será afetado de maneira intensa por uma amizade, um desafeto e uma paixão. Quando finalmente puxa o gatilho e cumpre com o que deveria ser feito, ele se despede da civilização e segue o caminho que havia optado. 

Nada pode impedir a evolução natural das coisas. Muito menos as convenções sociais, por mais sedutoras que elas sejam. Enfim, apesar de balançado, Wyatt Earp vai embora – e a sua barba parece voltar a crescer. 


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