Acerca de A Marca da Forca (1968)

A Marca da Forca (Hang ‘Em High, 1968) pode não ser um filme tão bem resolvido — o que passa tanto pela direção de Ted Post quanto pelo trabalho dos roteiristas Leonard Freeman e Mel Goldberg, que, até onde pude ver, não tiveram uma carreira expressiva em Hollywood. Todavia, também por se tratar de um dos primeiros, senão o primeiro, faroeste protagonizado por Clint Eastwood depois da experiência na Itália com a célebre trilogia de faroestes espaguetes de Sergio Leone, algumas questões a respeito do gênero e da persona construída por Eastwood impõem-se no relevo desse campo ainda tão arredio.

Eu estava comentando com um amigo, dias atrás, como a obra de Clint enquanto diretor gira em torno das sombras. A estética não explora tão somente o contraste expressionista dos cenários, como também as veias do rosto embrutecido pelo tempo, suscitando assim a carga e o peso dramático acumulados ao longo dos anos como ator — muitas vezes, e talvez mais intensamente, em seus próprios projetos¹. Sinto que esse aspecto da cinematografia de Eastwood se faz ainda mais perceptível nos faroestes por ele encenados, cuja trajetória começa com o forasteiro sem nome e culmina nos fantasmas vingativos que sangram por dentro. Sendo assim, ao vê-lo ser arrastado por uma turba de homens furiosos e impacientes para ser enforcado no impressionante início A Marca da Forca, é difícil não pensar que estou diante de o que pode muito bem ser um ponto de inflexão da construção dessa persona de cinema que habitou os faroestes responsáveis por marcarem o retorno do ator-cineasta a Hollywood.


O filme de Ted Post, por mais atrapalhado que seja ao desenvolver certas convenções do gênero, acaba reforçando essa impressão na medida em que reanima justamente alguns motivos da tradição dos faroestes interessados em denunciar, entre outros problemas sociais, o linchamento popular e a contradição do sistema judiciário. Se lembro de Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident, de William A. Wellman, 1943) — salvo engano, um filme caro ao Clint —, recordo-me ainda prontamente do herói de James Stewart em E o Sangue Semeou a Terra (Bend of River, de Anthony Mann, 1952), que, tal qual o protagonista Jed Cooper (interpretado por Clint Eastwood), esconde debaixo do lenço à tal Marca da Forca que dá título à versão brasileira.

Para ser mais exato: o primeiro esconde; o segundo ostenta. É que a consciência do passado e o apreço pela nostalgia — novamente me volto ao primeiro terço do filme que conta com a presença nem um pouco inocente do fordiano Ben Johson — em A Marca da Forca fazem com que as cicatrizes sejam destacadas ao longo da jornada. Muito embora a fábula encenada por Ted Post mantenha os dois pés firmes nos estribos ao optar por um desfecho naturalmente cíclico, preservando a natureza dos arquétipos — o forasteiro que se torna homem da lei —, a qual o impossibilita de estabelecer laços com a comunidade — e, em última instância, com a bela e intrigante Rachel Warren (Inger Stevens). Nessa mesma toada maneirista, poder-se-ia dizer que uma tempestade fulleriana à la Dragões da Violência (Forty Guns, de Samuel Fuller, 1957) recai sobre o homem e a mulher, a fim de consumar uma paixão que, aqui, é inconciliável. Refiro-me à cena em que Rachel abriga-se com Cooper em uma cabana, depois de ambos revelarem, um ao outro, os seus respectivos fantasmas. É curioso que, em uma das últimas cenas — e aqui encaminho-me para para as linhas finais deste breve comentário —, Cooper diga a Rachel que não está partindo em busca de fantasmas — contrariando, com isso, de certo modo, a mulher, cuja esperança de vingar-se do bando que a violentou só não é maior que a disposição de deixar tudo isso para trás e construir uma vida ao lado do homem.

Se digo que é curioso é porque, em alguma medida, já estamos diante, se não de um fantasma, de alguém em vias de tornar-se um: Clint Eastwood, destinado a assombrar — os próximos filmes — e a ser assombrado — pelos anteriores e, em retrospecto, pelos que ainda viriam. Notas: [1] O Luiz Carlos Oliveira Jr. ocupa-se em descrever essa característica em O homem eastwoodiano, publicado no catálogo da mostra Clint Eastwood – Clássico e Implacável, realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil.



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